Neste mês de novembro de 2020, em referência ao Dia da Consciência Negra, a associada Amanda Ribeiro dos Santos, Promotora de Justiça que atua na Comarca de Jaguapitã escreveu o artigo “A construção da consciência negra: o compromisso ético de resgatar as memórias e sedimentar os caminhos da igualdade”.
Confira abaixo o trabalho da Promotora. Boa leitura!
A construção da consciência negra: o compromisso ético de resgatar as memórias e sedimentar os caminhos da igualdade
agora que percebemos
que somos a nossa própria cura
perdemos o medo de gritar
anos de silenciamento
agora provocam vendavais
ao lado das minhas estou a salvo
Ryane Leão
Os dias vivenciados nesse ano de 2020 já decretaram: não há como esquecê-los! Inúmeras vidas e projetos interrompidos, além de tantas outras dimensões da existência humana. E o mês dos girassóis chegou, também conhecido como mês da consciência negra, ocupando a sua vez nesse marco temporal, em que a humanidade viu-se obrigada a olhar profundamente e talvez melancolicamente no espelho.
Em uma pandemia, nossas mazelas e desumanidades ficaram em uma ampliada exposição desconfortável. A quem resta consciência humana, ecoa o dever de buscar a humanidade do eu e do outro, de modo circular e paritário, em que o eu e o outro possam juntos caminhar, observar, sentir, respeitar e edificar os diversos lugares da construção social.
Não há como negar que as angústias e as reflexões nesse ano de 2020 são distintas, as quais descortinaram atrevidamente as estruturas raciais da desigualdade social, cultural e econômica. Surge a percepção de que a mudança da consciência coletiva é necessária, de modo a promover verdadeiramente comportamentos e posturas antirracistas e, assim, desconstruir todos os instrumentos ainda persistentes, que hierarquizam, separam e desumanizam as pessoas, por critérios raciais.
Em outras palavras, o debate sobre igualdade racial alcançou outro patamar, pois reverberou no momento em que o distanciamento social foi necessário e colocou em evidência o valor e o significado das relações sociais, ainda que seja concomitantemente questionado o individualismo exacerbado de diversos grupos. Em perspectiva semelhante, o uso de redes sociais se revelou mais intenso por mulheres e homens negros, que assumem o protagonismo e a sua própria narrativa, em maior visibilidade, por seus estudos, experiências e produção de conhecimento.
Por alguma razão, o discurso antirracista felizmente atravessou as mais variadas barreiras e despertou o interesse de muitos indivíduos, que estavam alheios há bem pouco tempo às violências diárias sofridas pela população negra. Não se sabe a temporalidade desse movimento, mas tenhamos a esperança que o debate racial será contagiante, promissor e fonte de inúmeras ações nos outros meses, por duradouros anos.
É preciso compreender que a humanidade perde quando somos separados em raças e ainda nos categorizamos e nos classificamos. Todos nós somos atingidos e colocados em caminhos muito distantes daquilo que representa a essência humana.
O reconhecimento da valorosa diversidade brasileira e a emancipação dos grupos raciais vulnerabilizados são o horizonte. Não podemos de nenhuma forma retroceder, notadamente diante da nossa história, em grande parte silenciada, e da longa e árdua batalha por dignidade da pessoa humana de mulheres e homens negros, vertente principiológica de direitos e garantias fundamentais, com assento na Constituição da República de 1988.
As ações afirmativas no âmbito educacional, muito questionadas e criticadas, demonstram um inegável resultado muito positivo. Primeiro, as conquistas dos movimentos negros plurais são expandidas. Igualmente, o estudo da temática racial é amplificado. Ademais, a abertura democrática do acesso em prol da diversidade brasileira revela-se necessária nos mais diferentes campos de produção profissional, acadêmica e cultural, bem como nos espaços institucionais.
O Ministério Público brasileiro também avança em seu papel constitucional. As inúmeras iniciativas, como a criação de grupos de combate ao racismo, a discussão pelas escolas superiores de capacitação, a instituição de cotas raciais em seus processos de seleção, a edição de atos normativos e a aproximação da sociedade civil devem ser ainda mais incentivadas.
Nessa tessitura, importante render ainda homenagens às mulheres abolicionistas e também àquelas que ocupam posição de destaque nos tempos atuais, de forma a conectar as memórias de um triste passado às lutas para construção do presente e a perspectiva de um inclusivo futuro.
Entre as primeiras, a princesa congolesa Aqualtune (séculos 16 e 17) surge como exemplo ancestral de liderança, coragem e resiliência, especialmente durante o processo de formação e consolidação do Quilombo dos Palmares, cuja relevância histórica é inquestionável. Há registros sobre a importância política e estratégica de Aqualtune Ezgondidu Mahamud, que viveu intensamente a busca por libertação de corpos e mentes.
Atualmente, em meio a muitas personalidades, temos a filósofa Sueli Carneiro, internacionalmente reconhecida e premiada como defensora dos direitos humanos, que no ano da promulgação da atual Constituição da República fundou o Instituto da Mulher Negra – Geledés, voltado às ações no âmbito da temática igualdade racial e de gênero. A sua influência é tão significativa, que a celebração dos seus 70 anos, no último dia 24 de junho, foi marcada por encontros para debater a grande contribuição do seu legado para o Direito.
É muito evidente nessas histórias destacadas de Aqualtune e Sueli Carneiro a representatividade sobre o senso de coletividade que define a trajetória de mulheres negras, ao longo dos séculos. Nada obstante as tecnologias violentas que lhe foram impostas nesse solo brasileiro, a identidade e a subjetividade de cuidado e proteção do interesse comum das pessoas em diáspora afro-brasileira sempre permaneceram.
Portanto, falar de consciência envolve necessariamente afeto, ainda mais no transcorrer de uma crise sanitária e social dessa magnitude. A vivência em sociedade significa encontro como seres humanos, sociais e afetivos. A dor do outro é minha, nossa e juntos devemos encontrar a cura: Umuntu Ngumuntu Ngabantu (Eu sou porque você é, e você é porque nós somos).
Referências Bibliográficas
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. Belo Horizonte: Letramento, 2018;
COLETIVO NARRATIVAS NEGRAS. Narrativas Negras: biografias ilustradas de mulheres pretas brasileiras. Belo Horizonte: Editora Voo, 2020;
EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. 2a ed. Rio de Janeiro: Malê, 2016;
GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador. Editora Vozes. Edição do Kindle;
KILOMBA, Grada, 1968 – Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. 1a. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019;
LEÃO, Ryane. Tudo nela brilha e queima. Editora Planeta. Edição do Kindle;
VAZ, Lívia Sant’Anna. O Direito e a síndrome do sangue azul. In: Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, Ano 3, n. 9, Junho/2020. p. 11-12. Disponível em: <http://www.ibadpp.com.br/novo/wp-content/uploads/2020/07/TRINCHEIRA-JUNHO-2020-WEB.pdf>. Acesso em: 24 out 2020.
Por Amanda Ribeiro dos Santos
04/11/2020
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