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ARTIGO | A construção da consciência negra: o compromisso ético de resgatar as memórias e sedimentar os caminhos da igualdade

Associada Amanda Ribeiro escreveu artigo em referência ao Dia da Consciência Negra
19 de novembro de 2020

Neste mês de novembro de 2020, em referência ao Dia da Consciência Negra, a associada Amanda Ribeiro dos Santos, Promotora de Justiça que atua na Comarca de Jaguapitã escreveu o artigo “A construção da consciência negra: o compromisso ético de resgatar as memórias e sedimentar os caminhos da igualdade”.

Confira abaixo o trabalho da Promotora. Boa leitura!

A construção da consciência negra: o compromisso ético de resgatar as memórias e sedimentar os caminhos da igualdade

agora que percebemos
que somos a nossa própria cura
perdemos o medo de gritar
anos de silenciamento
agora provocam vendavais
ao lado das minhas estou a salvo

Ryane Leão

Os dias vivenciados nesse ano de 2020 já decretaram: não há como esquecê-los! Inúmeras vidas e projetos interrompidos, além de tantas outras dimensões da existência humana. E o mês dos girassóis chegou, também conhecido como mês da consciência negra, ocupando a sua vez nesse marco temporal, em que a humanidade viu-se obrigada a olhar profundamente e talvez melancolicamente no espelho.

Em uma pandemia, nossas mazelas e desumanidades ficaram em uma ampliada exposição desconfortável. A quem resta consciência humana, ecoa o dever de buscar a humanidade do eu e do outro, de modo circular e paritário, em que o eu e o outro possam juntos caminhar, observar, sentir, respeitar e edificar os diversos lugares da construção social.

Não há como negar que as angústias e as reflexões nesse ano de 2020 são distintas, as quais descortinaram atrevidamente as estruturas raciais da desigualdade social, cultural e econômica. Surge a percepção de que a mudança da consciência coletiva é necessária, de modo a promover verdadeiramente comportamentos e posturas antirracistas e, assim, desconstruir todos os instrumentos ainda persistentes, que hierarquizam, separam e desumanizam as pessoas, por critérios raciais.

Em outras palavras, o debate sobre igualdade racial alcançou outro patamar, pois reverberou no momento em que o distanciamento social foi necessário e colocou em evidência o valor e o significado das relações sociais, ainda que seja concomitantemente questionado o individualismo exacerbado de diversos grupos. Em perspectiva semelhante, o uso de redes sociais se revelou mais intenso por mulheres e homens negros, que assumem o protagonismo e a sua própria narrativa, em maior visibilidade, por seus estudos, experiências e produção de conhecimento.

Por alguma razão, o discurso antirracista felizmente atravessou as mais variadas barreiras e despertou o interesse de muitos indivíduos, que estavam alheios há bem pouco tempo às violências diárias sofridas pela população negra. Não se sabe a temporalidade desse movimento, mas tenhamos a esperança que o debate racial será contagiante, promissor e fonte de inúmeras ações nos outros meses, por duradouros anos.

É preciso compreender que a humanidade perde quando somos separados em raças e ainda nos categorizamos e nos classificamos. Todos nós somos atingidos e colocados em caminhos muito distantes daquilo que representa a essência humana.

O reconhecimento da valorosa diversidade brasileira e a emancipação dos grupos raciais vulnerabilizados são o horizonte. Não podemos de nenhuma forma retroceder, notadamente diante da nossa história, em grande parte silenciada, e da longa e árdua batalha por dignidade da pessoa humana de mulheres e homens negros, vertente principiológica de direitos e garantias fundamentais, com assento na Constituição da República de 1988.

As ações afirmativas no âmbito educacional, muito questionadas e criticadas, demonstram um inegável resultado muito positivo. Primeiro, as conquistas dos movimentos negros plurais são expandidas. Igualmente, o estudo da temática racial é amplificado. Ademais, a abertura democrática do acesso em prol da diversidade brasileira revela-se necessária nos mais diferentes campos de produção profissional, acadêmica e cultural, bem como nos espaços institucionais.

O Ministério Público brasileiro também avança em seu papel constitucional. As inúmeras iniciativas, como a criação de grupos de combate ao racismo, a discussão pelas escolas superiores de capacitação, a instituição de cotas raciais em seus processos de seleção, a edição de atos normativos e a aproximação da sociedade civil devem ser ainda mais incentivadas.

Nessa tessitura, importante render ainda homenagens às mulheres abolicionistas e também àquelas que ocupam posição de destaque nos tempos atuais, de forma a conectar as memórias de um triste passado às lutas para construção do presente e a perspectiva de um inclusivo futuro.

Entre as primeiras, a princesa congolesa Aqualtune (séculos 16 e 17) surge como exemplo ancestral de liderança, coragem e resiliência, especialmente durante o processo de formação e consolidação do Quilombo dos Palmares, cuja relevância histórica é inquestionável. Há registros sobre a importância política e estratégica de Aqualtune Ezgondidu Mahamud, que viveu intensamente a busca por libertação de corpos e mentes.

Atualmente, em meio a muitas personalidades, temos a filósofa Sueli Carneiro, internacionalmente reconhecida e premiada como defensora dos direitos humanos, que no ano da promulgação da atual Constituição da República fundou o Instituto da Mulher Negra – Geledés, voltado às ações no âmbito da temática igualdade racial e de gênero. A sua influência é tão significativa, que a celebração dos seus 70 anos, no último dia 24 de junho, foi marcada por encontros para debater a grande contribuição do seu legado para o Direito.

É muito evidente nessas histórias destacadas de Aqualtune e Sueli Carneiro a representatividade sobre o senso de coletividade que define a trajetória de mulheres negras, ao longo dos séculos. Nada obstante as tecnologias violentas que lhe foram impostas nesse solo brasileiro, a identidade e a subjetividade de cuidado e proteção do interesse comum das pessoas em diáspora afro-brasileira sempre permaneceram.

Portanto, falar de consciência envolve necessariamente afeto, ainda mais no transcorrer de uma crise sanitária e social dessa magnitude. A vivência em sociedade significa encontro como seres humanos, sociais e afetivos. A dor do outro é minha, nossa e juntos devemos encontrar a cura: Umuntu Ngumuntu Ngabantu (Eu sou porque você é, e você é porque nós somos).

 

Referências Bibliográficas

CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. Belo Horizonte: Letramento, 2018;

COLETIVO NARRATIVAS NEGRAS. Narrativas Negras: biografias ilustradas de mulheres pretas brasileiras. Belo Horizonte: Editora Voo, 2020;

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. 2a ed. Rio de Janeiro: Malê, 2016;

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador. Editora Vozes. Edição do Kindle;

KILOMBA, Grada, 1968 – Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. 1a. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019;

LEÃO, Ryane. Tudo nela brilha e queima. Editora Planeta. Edição do Kindle;

VAZ, Lívia Sant’Anna. O Direito e a síndrome do sangue azul. In: Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, Ano 3, n. 9, Junho/2020. p. 11-12. Disponível em: <http://www.ibadpp.com.br/novo/wp-content/uploads/2020/07/TRINCHEIRA-JUNHO-2020-WEB.pdf>. Acesso em: 24 out 2020.

 Por Amanda Ribeiro dos Santos
04/11/2020

Confira aqui a versão em PDF.

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