Para além de afrontar o Código de Ética Médica que no capítulo que trata dos direitos humanos veda condutas degradantes, desumanas e que violam a dignidade humana, a infração mais grave é para com o código de ética universal presente no inconsciente coletivo de todos os nascidos no seio de uma sociedade civilizada. Mas interessante perceber que, quando ocorre uma brutalidade incontestável, a percepção geral é sobre o fato, raramente sobre o contexto.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2022, na última década 583.156 pessoas foram vítimas de estupro e estupro de vulnerável, no Brasil, sendo 88,2% do sexo feminino e as do sexo masculino majoritariamente crianças. O fato aviltante, portanto, não é isolado.
Mais que isso: disparam denúncias, de norte a sul do país, dando conta de crimes sexuais contra mulheres, especialmente em situações que denotam a existência de relações de dominação ou poder, como no caso das pacientes, temporariamente submetidas ao médico.
Há de se refletir sobre que valores e que pensamentos regem as práticas ético-políticas da história humana. Qual é a lógica que instaura as condições propícias à submissão da mulher à violência de todas as ordens, singularmente em ambientes regidos pelo poder masculino, e que em um espectro amplificado propiciam também crimes bárbaros?
Como matriz das graves estatísticas, a lógica de controle e submissão sobre os corpos femininos é a mesma, e dela derivam as práticas criminosas, das menos às mais graves. Conforme um conceito da antropologia, a cultura condiciona a visão de mundo do ser humano, o que nos leva a indagar que visão é esta em que se buscam corpos femininos disponíveis à satisfação.
Falo aqui de disponibilidade não no sentido do consentimento da mulher, como sujeita de direitos e dona do próprio corpo, mas no sentido de vulnerável e apta à submissão, seja em razão de uma “eficiente” dose de anestésicos, seja por outras várias razões que, obviamente, envolvem submissão econômica, psicológica, social, intelectual e hierárquica, notadamente no seio da própria família, comunidade em que vive, ou nos ambientes corporativos.
O que será que pensa o médico de São João de Meriti, agora de Bangu, sobre as mulheres? Porventura acredita que mulheres são instrumentos voltados à satisfação masculina? Será que, no contexto social em que viveu, durante seus 31 anos de vida, nunca teve oportunidade de “aprender” sobre a humanidade das mulheres? Será que participou natural e ativamente das “conversas de médicos” ou “de amigos” sobre os corpos das pacientes, mesmo durante os atos cirúrgicos, e será que foi aplaudido pelos que ouviam?
A mulher vítima do grave crime do dia 10 de julho foi desumanizada, aviltada em sua dignidade, num dos momentos de maior plenitude de sua vida. Desumanizada e violentamente importunada no divino estado de graça da concepção. Quando, contudo, com vontade livre e consciente, o abusador decidiu praticar as condutas, optou também por despojar-se de um tanto de sua própria humanidade porque comportou-se de modo animalesco, espoliando-se livremente de juízos, sentimentos e autolimitações próprios da condição humana, especialmente quando em convivência social.
Vejo que passou da hora de olharmos com atenção para o caldo cultural que produz tais monstruosidades, já que, como os demais médicos da sala de cirurgia, nossa sociedade mostra-se distraída.
O fato é que a humanidade tem fracassado, mas como o processo civilizatório ainda está em curso, e em nossa breve passagem pelo Planeta testemunhamos uma diminuta parcela dessa marcha, creio que ainda há esperanças para as próximas gerações.
Autora: Lucimara Rocha Ernlund, promotora de Justiça Ministério Público do Estado do Paraná
Com informações: Paraná Portal.
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