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Artigo: A Normatização da Cultura do Estupro

Confira o artigo da associada Ana Vanessa Fernandes Bezerra
18 de julho de 2024

A Normatização da Cultura do Estupro

Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de Lei nº PL 1904/2024 que tipifica penalmente a conduta da mulher vítima de estupro que interromper a gravidez, em que a viabilidade fetal é superior a 22ª semana de gestação, bem como recrudesce as penas para o crime de aborto, promovendo profundas alterações do artigo 124 ao artigo 128 do Código Penal. 

Para analisar essa proposta de maneira adequada, é necessária uma breve abordagem histórica de como o Brasil foi povoado. A colonização portuguesa impôs seus costumes, extraiu as riquezas naturais, subjugou a população originária, causou a diáspora africana e adotou como prática corriqueira o estupro da população indígena e da africana. A prática de estupro pelo homem branco contra mulheres indígenas e africanas gerou um país miscigenado e desenvolveu a cultura do estupro.

A miscigenação forçada, que marcou a história do Brasil, foi comprovada cientificamente através do Projeto DNA do Brasil que estudou o sequenciamento de 4.000 genomas brasileiros. A análise parte da premissa de que metade dos genes são originários do sexo feminino e metade do masculino, sendo que alguns genes são transmitidos exclusivamente por um dos sexos. Com isso o estudo concluiu que 70% das mães que deram origem à população brasileira são africanas e indígenas, e 75% dos genes masculinos são europeus¹. É de fácil conclusão que a miscigenação decorreu da submissão dos corpos femininos, africanos e indígenas, à violência física e sexual, praticada pelo ‘colonizador’ que os utilizavam como objetos, para satisfação de desejos lascivos. 

Mencione-se que também mulheres brancas eram tratadas como moeda de troca por seus genitores, que tramavam casamentos arranjados como forma de ampliar suas terras ou consolidar os latifúndios, o que se pode chamar de estupro matrimonial. É inegável que o país foi povoado considerando conveniente a violência contra a mulher. Assim, quando se passa a conhecer as raízes da ancestralidade Brasileira, fica mais fácil entender as razões pelas quais o Projeto nº PL 1904/2024 tramita no Congresso Nacional, sob regime de urgência, e que visa criminalizar, com pena equivalente ao crime de homicídio, a conduta de meninas e mulheres que interromperem a gravidez decorrente de estupro após a 22ª semana de gestação. Com a aprovação do projeto, a vítima de estupro será forçada a dar a luz ao produto da violência sofrida, pois do contrário será considerada autora de um crime que pode chegar a 20 anos de prisão, punição que inclusive supera a sanção cominada ao crime de estupro, que no tipo mais grave, de estupro de vulnerável, a pena máxima é de 15 anos de prisão.

O projeto coloca luz ao ideário masculino de que eles podem decidir sobre os corpos femininos, ao puro desejo de exercer mando sobre as mulheres. Logicamente que o discurso trazido a público é edificante, no sentido de que se resguarda os direitos da vítima de estupro, tendo em vista a fixação de prazo para interrupção da gestação. Contudo, é de conhecimento público os enormes obstáculos enfrentados pela vítima de violência sexual para ter o direito de não gestar, de modo que, na maioria substancial dos casos, a gestação atingirá a 22ª semana por entraves do próprio sistema. 

A Constituição Federal possui como princípios basilares a dignidade da pessoa humana e a solidariedade. O primeiro pode ser conceituado como o dever do estado de promover o bem estar de todos e todas e garantir condições para o exercício pleno da autonomia da vontade. O segundo consiste no sentimento de consternação com o sofrimento do outro e no dever de adotar medidas que sanem ou minimizem o sofrimento de alguém. O Projeto de Lei viola frontalmente a Constituição da República, eivado, portanto, de inconstitucionalidade, porque ele trata meninas e mulheres vítimas de crimes sexuais com indignidade e hostilidade, uma vez que nega o exercício do direito reprodutivo da mulher e, ainda, submete a vítima a tratamento mais grave do que o conferido ao estuprador.

É óbvio que o projeto atende à demanda de segmentos religiosos, e aqui se adota o termo amplo, para não atribuir a responsabilidade para um só grupo, que consideram convicções religiosas superiores à ordem jurídica democrática e que almejam excluir pessoas de direitos legais, dentre eles o direito ao aborto em decorrência de estupro. É importante esclarecer que a todos é assegurado o direito de professar a fé, de buscar na religião acolhimento, conforto e contato com o divino, contudo, não se pode admitir que ideologias religiosas rejam o tom da legislação que trata de comportamento, saúde pública, liberdades individuais e criminalização de condutas.

Nesse mosaico de injustiça, perversidade e ‘legalidade’ cria-se um novo tipo penal, que elege como agente do crime a mulher grávida de um estupro. Em um País no qual foram registrados 34 mil estupros e estupros de vulneráveis de meninas e mulheres de janeiro a junho de 2023, observando-se um aumento de 14,9% em relação ao ano de 2022² , segundo dados Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), é evidente que o Congresso Nacional deveria direcionar sua atuação para criar políticas públicas para acabar com a cultura do estupro, reduzir as vergonhosas estatísticas de crimes sexuais, agravar as penas, desburocratizar o acesso ao aborto, bem como criar um sistema eficiente de acolhimento à vítima. Mas o que se observa é uma guerra travada contra mulheres e meninas, por não aceitarem gestar um filho decorrente de crime cruel, como o estupro.

É incontroverso que o ‘bem jurídico’ que essa norma visa proteger é o patriarcado, que se pretende continuar governando, preservando seus privilégios, subjugando pessoas vulneráveis e perpetuando a cultura do estupro que passaria a ter proteção legal. Neste contexto, é crucial a mobilização da sociedade civil para que não haja retrocessos na pauta de direitos fundamentais, incluindo a autonomia da vontade no exercício de direitos reprodutivos, de modo a resguardar meninas e mulheres, da presente e futuras gerações, de arbitrariedades sobre suas vidas e corpos. 

Ana Vanessa Fernandes Bezerra
Associada e Promotora de Justiça

 

¹ https://blog.gen-t.science/2022/12/dna-do-brasil-genoma/

² https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-11/numero-de-estupros-aumenta-149-no-brasil-com-34-mil-em-seis-meses

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