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Artigo: As chagas de Cíntia e as Àguas Antigas

Leia o texto da associada Ticiane Louise Santana Pereira
16 de outubro de 2024

No mundo performático da internet onde regras traçam certezas e personagens encerram pessoas, tudo que é concebido para ser simétrico e perfeito, pois pré-feito, adorna o belo... O chiquíssimo! Esse universalismo elitista que as redes sociais parecem colher, em símile, seguidores de um mesmo avatar. Mas um avatar belo. 

Como se belos também nos tornássemos ao margear seu frondoso sentido, mesmo sem senti-lo. Sem sê-lo. Uma ficção analgésica dos nossos tempos, facilitada pelo movimento de uma ‘curtida’, esta adesão significadora do alívio ao exilar-se daquele espaço de sua negação, onde mora sua antítese: o espaço do cafona. Cafoníssimo! 

Como em um enredo embolorado de anacronismos, foi nessa dualidade aprisionante que situamos as projeções destes avatares sedutores: a bela e bem sucedida professora de português que, para além das regras gramaticais, decorando-se, decorou também as regras de etiqueta social, além das glosas de grupos ideológicos. Com ela, e ao seu lado, passe-se o pleonasmo, um indefectível jovem político de aparência também hiperbolicamente bela, também glosador de crenças ideológicas de seu ancho. Bingo!

Mas o paradoxo só veio à tona quando o enlace fraturou a glosa retórica mais aglutinadora do seu nicho ideológico: O “felizes para sempre” acabou no ordinarizante (e cafoníssimo!) balcão da Polícia, desvelando suas personagens e revelando suas (de)formações. Humanizaram-se, para a decepção de muitos.

Já em 1911, Charlotte Perkins, em um conto intitulado “Àgua Antiga” bem situou estes paradoxos, quando ensaiou um (des)encontro da bela, remadora atlética e livre Hellen Osgood e um apaixonado e galanteador poeta (que sequer mereceu da autora a identidade nominativa, reforçando sua universalidade temporal) que lhe cortejava através da adoração, mimetizando-a a deusas do velho Olimpo. 

Hellen aceitava a corte, que secretamente julgava ridícula (cafoníssima!). Mas, para não decepcionar a mãe, seguiu a velha indulgência histórica (que aprendemos desde cedo a suportar, justificando, eufemisticamente, o insuportável), ria-se por dentro, principalmente por desconfiar-se humanamente mais talentosa que seu festejado trovador. 

O desfecho do Conto é simbólico: sob a metáfora mais antiga, príncipe virou sapo e, não suportando a rejeição da bela, reveladora de sua pequenez, atirou-se com ela em águas escuras, ensaiando um epílogo trágico. Hiperbólico. Grandioso para seu personagem. Cafoníssimo.

Mas a bela remadora atlética aprendeu que canoas podem virar, e escapou do seu algoz usando outro talento: o nado. E a braçadas, seguindo em frente, sobreviveu. Ele não. 

Esta subversão fantástica de destinos, sabemos, não é comum: sobrevivemos menos. 

Mas, em sobrevivendo, avatares também podem seguir resistindo, desde que sigam outra retórica do mundo virtual, “reinventando-se”. E nessa mudança de rumos, é possível que a professora aprenda, em uma ironia anáfora de sentidos. É quando seguidoras tornam-se apoiadoras e, em feliz gradação, o antígeno chega de mãos improváveis, desafiando glosas, performances, nichos ideológicos… 

Não há chagas que durem para sempre no corpo de uma mulher. Suas cicatrizes são forjadas de forma estranha, catacrética: o antígeno que lhe salva cresce na mesma proporção que anticorpos. E a largas passadas, algumas de nós sobrevivem. 

Nem todas. Mas por todas, é possível personificarmos apoio. Por que não basta nascer mulher, é preciso ser mais.

Toda a solidariedade a Cíntia Chagas. 

Ticiane Louise Santana Pereira

Promotora de Justiça e associada da APMP

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