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Artigo - Luislinda Valois: justiça, resistência e a luta por igualdade

Confira o artigo da Presidente Symara Motter publicado pelo jornal Gazeta do Povo
2 de dezembro de 2024

Luislinda Valois: justiça, resistência e a luta por igualdade

(Leia o texto no site da Gazeta clicando aqui)

O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, é uma data de reflexão e celebração da luta histórica do povo negro por igualdade e reconhecimento no Brasil. Este dia, que homenageia a memória de Zumbi dos Palmares e simboliza a resistência contra a escravidão, também marca o início dos 21 Dias de Ativismo contra a Violência contra a Mulher. Essa coincidência não é meramente cronológica e sim profundamente simbólica, pois reforça a urgência de combater as opressões estruturais que afetam, de forma particular, as mulheres negras.

Historicamente, mulheres negras têm enfrentado o peso combinado do racismo e do machismo. Essa dupla vulnerabilidade as torna também mais expostas à violência de gênero, incluindo violência doméstica, obstétrica, sexual e simbólica. Segundo dados de organismos nacionais e internacionais, elas são as maiores vítimas de feminicídios no Brasil, e a discriminação racial amplia ainda mais os desafios que enfrentam para acessar justiça, saúde e proteção.

Os 21 Dias de Ativismo contra a Violência contra a Mulher surgem como uma convocação para enfrentar essas realidades com ações concretas e uma conscientização coletiva. É um chamado para reconhecer que a luta pela igualdade racial está intrinsecamente conectada à luta pela igualdade de gênero. Combater a violência contra a mulher negra não é apenas uma questão de justiça social, mas também de reparar séculos de exclusão, exploração e silenciamento.

Luislinda Dias de Valois Santos é um exemplo de que é possível resistir, avançar e construir um futuro em que a igualdade e o respeito prevaleçam. Ela, filha de seu Luiz, motorneiro de bonde e de dona Lindaura, sua mãe, que era passadeira e lavadeira, transformou adversidades em combustível para sua luta. Desde cedo, enfrentou o preconceito racial de forma direta, como no episódio em que um professor lhe recomendou abandonar os estudos para aprender a "fazer feijoada na casa dos brancos". A resposta de uma menina de nove anos – “Vou estudar, ser juíza e lhe prender” – não apenas desafiou a lógica racista do opressor, mas prenunciou uma vida dedicada à justiça.

Ela, que recebeu no último dia 14 de novembro o título de cidadã honorária de Curitiba, possui uma trajetória que é um exemplo de persistência. Mesmo diante de desafios econômicos e sociais, formou-se em Direito aos 39 anos, alcançou o primeiro lugar em diversos concursos e se tornou uma das primeiras mulheres negras a ingressar na Magistratura brasileira. Aos 42 anos, concretizou a promessa anunciada ao professor racista, tornando-se juíza e, posteriormente, desembargadora. Foi pioneira, mas nunca se contentou com conquistas individuais: lutou para transformar sua própria experiência em avanços coletivos.

Luislinda foi autora da primeira sentença de condenação por injúria racial no Brasil, em 1993. Um marco histórico que revelou sua coragem e compromisso com a justiça social. Mesmo enfrentando perseguições e ameaças, ela persistiu, mostrando que a justiça é um espaço onde a igualdade deve prevalecer. Sua atuação no Judiciário não apenas abriu caminhos para outras mulheres negras, mas também colocou o racismo estrutural em debate.

Além de suas contribuições como magistrada, destacou-se por iniciativas como o "Balcão de Justiça e Cidadania", criado em 2003 para facilitar o acesso à justiça em comunidades vulneráveis. Seu trabalho na Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e no Ministério dos Direitos Humanos consolidou sua atuação como defensora incansável da dignidade humana. Luislinda foi além do simbolismo: atuou para que políticas públicas, como a Lei de Prioridade Absoluta para maiores de 80 anos, fossem implementadas com eficácia.

Apesar de todos os avanços que ela representa, a história da ex-ministra também nos lembra do fosso racial persistente no Brasil. A representatividade negra em posições de poder ainda é desproporcional, reflexo de um racismo estrutural que permeia a sociedade. Como disse a filósofa Angela Davis, “não devemos aceitar as coisas que não podemos mudar, mas mudar as coisas que não podemos aceitar”. O exemplo de Luislinda nos mostra que mudanças profundas são possíveis, mas exigem ações concretas, como políticas afirmativas e medidas antirracistas que promovam a igualdade de oportunidades, principalmente pelas instituições que compõem o sistema de Justiça. Luislinda, é um símbolo de força, justiça e resiliência. Ela personifica o poder do “lugar de fala”, que não é apenas uma questão de ocupar espaços, mas de existir plenamente e transformar esses espaços em instrumentos de mudança.

Desde a publicação da Lei 12.288/2010 – Estatuto da Igualdade Racial – foi reconhecido e estabelecido pelo Estado brasileiro que não basta, para a superação da desigualdade racial persistente em nosso país, apenas a censura e a punição à discriminação explícita em casos individuais e pontuais. Há muito a ser feito, sobretudo um sistema de acompanhamento de promoção de igualdade racial, medidas de combate à discriminação indireta e à naturalização do preconceito, promoção de condições equitativas para a igualdade de oportunidades e inclusão como impulso à sua representatividade nos espaços públicos de prestígio e poder, ampliando a diversidade nessas instâncias que ainda não proporcionalmente ocupadas por todos os grupos raciais como medida de justiça material.

No Direito Brasileiro o problema da discriminação racial, em geral, tem sido tratado apenas por meio da vertente punitiva e não da vertente promocional. Esta conclusão é agravada pelo fato da vertente punitiva ainda apresentar pouca efetividade, tendo em vista serem isoladas as decisões que condenam criminalmente a prática do racismo, como demonstra a história da nossa homenageada, cidadã honorária de Curitiba Luislinda Dias de Valois Santos.

Para enfrentar essa realidade, o Brasil ratificou, em Decreto publicado em 11 de janeiro de 2022, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, que ingressou em nosso ordenamento jurídico com o status de emenda constitucional e estabeleceu obrigações para os signatários referentes à proteção de todo ser humano contra a discriminação e a intolerância e promoção de ações afirmativas, que são medidas positivas adotadas para aliviar e remediar as condições resultantes de um passado discriminatório. A Convenção também estabelece aos Estados-partes o dever de adoção de medidas eficazes nos campos do ensino, educação, cultura e informação, contra os preconceitos que levem à discriminação racial, ressaltando, assim, a importância de uma educação para a cidadania, fundada no respeito à diversidade, tolerância e dignidade humana.

Ao celebrar a vida e o legado de Luislinda Dias de Valois Santos, também celebramos a possibilidade e a necessidade de uma sociedade mais justa, plural e igualitária. Que sua história inspire todos nós a lutar e estimular por uma consciência jurídica crítica capaz de tornar efetiva a eliminação da discriminação racial, combinando estratégias repressivas e promocionais, que propiciem a plena implementação do direito à igualdade, com a crença de que somos iguais, diferentes e diferentes, mas, sobretudo iguais.

Symara Motter, promotora de Justiça no Ministério Público do Paraná, Presidente da Associação Paranaense do Ministério Público, especialista em Direito Penal e integrante da Comissão de Mulheres da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP).

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