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Artigo: Saberes, Sabores e Dissabores

Confira o artigo da associada Wilza Machado Silva Lacerda que foi publicado no site do Memorial do MPPR
6 de julho de 2023

O memorial do Ministério Público do Paraná publicou recentemente um artigo escrito pela promotora de Justiça e associada da APMP, Wilza Machado Silva Lacerda. O texto traz reflexões pessoais e profissionais da própria associada, após a promotora ter sofrido um acidente doméstico. 

Confira o artigo na íntegra publicado no site do Memorial do MPPR. 

Saberes, Sabores e Dissabores 

Por Wilza Machado Silva Lacerda, promotora de Justiça da comarca Cruzeiro do Oeste

É manhã de quarta-feira, a luz do sol atravessa os vidros da janela do quarto, de onde contemplo um céu bem azul, quase sem nuvens. Há poucos dias não me passava pela mente que estaria na cama a esta hora, quase onze, nem em um sábado ou domingo, muito menos em um dia de semana. Em “dias normais” já teria ido à academia fazer musculação; tomado café da manhã; feito a minha aula virtual de inglês e, após chegar ao acordo com a colaboradora doméstica sobre o que fazer para o almoço, estaria em pleno trabalho, lançando os pareceres nos sistemas judiciais, além de realizar reuniões virtuais com a minha equipe e preparar as audiências da tarde. 

Há um pouco mais de dois meses, uma queda na escada de casa causou-me uma grave fratura dupla de tornozelo e lesão no cóccix. Depois de duas cirurgias, estou deitada esperando que esse “arcabouço” de ossos (para usar uma palavra que ouço demais no noticiário) consiga se soldar e me colocar de novo de pé e andando. Enquanto isso, vejo o mundo sob outra perspectiva, como naquele filme antigo3 em que o professor convida os alunos a se levantarem e se colocarem de pé sobre as carteiras para olhar o mundo por outro ângulo. Só que, no meu caso, tive que deitar para alterar a visão. 

Minha primeira reflexão é sobre a absoluta falta de controle que temos sobre nós. Eu sempre planejei tudo, sou a louca do planejamento. Desde uma ida ao supermercado, onde nunca vou sem uma lista de compra, até um complexo roteiro de viagem, em que cada dia se encaixa em uma rigorosa planilha feita com meses de antecedência. Um evento sem nenhum controle, em uma fração de minuto, retira-me do “centro do comando”, e me mostra que eu nada sou, que sou dependente para as ações mais simples. Que não sou nem mais um “bípede sem penas”4, pois não consigo andar. 

Nesses sessenta e poucos dias, após crises de enxaqueca e outros agravos, procuro ler, assistir filmes, estudar um pouco e refletir, pois o cérebro não quer se aquietar nem mesmo com o esqueleto partido. Me pego divagando, penso em palavras que já se tornaram cansativas e chatas: “empoderamento, narrativa, protagonismo”. Para onde foram as palavras “sarau, bonina, alpendre”? Perderam-se no reino das palavras, onde nem mais esperam ser escritas, pobrezinhas. Olho o céu e lembro de Kant5: “o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”. E ainda pensando neste grande filósofo, lembro do artifício dos “óculos de Kant”: condições e circunstâncias que nos fazem ver o mundo da forma em que o vemos e não como ele é em si. Vejo céu azul, porque possuo uma condição inerente à razão que me faz vê-lo assim. O mundo apreendido pelo meu cérebro é uma versão editada do mundo real. 

Relembro minhas lutas para ingresso ao cargo que exerço há quase quinze anos: promotora de justiça no Ministério Público do Estado do Paraná6. Minha história é diferente da maioria dos que ingressam em cargos públicos, sobretudo nos concursos mais rigorosos. Isto porque, costumo dizer, comecei a carreira de “trás para a frente”: casei, me tornei mãe e depois fui estudar e fazer concursos. Sem oportunidade de estudar no tempo “regular”, retornei à escola quando já estava casada e com três filhos bem pequenos, dois deles na primeira infância. Com poucos meses concluí o ensino médio pelo método supletivo e ingressei no curso de Direito. O período da faculdade foi um excelente tempo de aprendizagem, de uma busca insaciável pelos “saberes”, uma porta que se abriu na minha mente! E também de muita renúncia, muito tempo furtado da família e dedicado aos estudos, afinal, o caminho para o conhecimento passa invariavelmente pelos sentidos e nada se forma na mente sem que tenha sido experimentado, visto ou vivenciado7. Assim, amontoei livros e livros lidos, relidos, rabiscados, rascunhados, resumidos. Tal dedicação e esforço me permitiram formar com honra e ser premiada com uma bolsa de estudo de mestrado, o que me fez iniciar profissionalmente pela vida acadêmica, que exerci por cinco anos.  

Senti necessidade de galgar um outro passo na carreira, em busca de estabilidade financeira e de contribuir minimamente na luta contra injustiças sociais e na construção de um mundo melhor. Lembrava das palavras de John Rawls8 (com quem tive um “caso de amor” no mestrado): “não há injustiça nos benefícios maiores conseguidos por uns poucos, desde que a situação dos menos afortunados seja com isso melhorada”9. A trajetória não foi fácil, estudava sozinha, trabalhando e cuidando das crianças, como podia. E claro, tendo a culpa como companheira todas as noites. Não tenho lembranças boas dessa época. Sofri preconceito etário, até dos colegas mais próximos, aqueles com quem eu sempre colaborei na faculdade. “Nossa! Como uma pessoa da sua idade ainda consegue aprender tanto?”, “Ministério Público? Só para jovens bem-nascidos!”, “Pense em outra carreira mais compatível com a sua idade”, “Não adianta se esforçar, você vai ser reprovada na prova oral, eles não querem pessoas mais velhas!”. Se não fosse o apoio incondicional do marido, teria mesmo desistido. 

Aprovada no concurso, deixei minha casa em Minas Gerais e iniciei a carreira no interior do Paraná10, vocacionada para esse digno mister e cheia de teorias de viés humanitário. Confesso que a prática foi bem diferente do que imaginava, que as questões mais simples me deixavam perdida e tive que me valer muitas vezes do bom senso. Mas descobri que as pessoas nutriam um sentimento de confiança para com o promotor de Justiça e muitas vezes a promotoria era seu único local de acolhimento. Assim, pude ajudar, por exemplo, encaminhando uma criança para uma cirurgia oftalmológica com a urgência necessária, atendendo uma mãe desesperada com o sumiço da filha adolescente, outra mãe em busca de tratamento para o filho viciado em drogas, um pequeno proprietário de terra preocupado com o solo de seu imóvel rural que se desprendeu pela força das águas pluviais não canalizadas corretamente na área urbana, deixando no pasto uma vala enorme ao mesmo tempo que assoreou o leito do pequeno curso de água. Na seara do processo criminal, nossa maior atuação, quantas vezes vivenciei um dilema: a obrigatoriedade da aplicação da lei penal com a consequente inserção do jovem no cárcere com todas as mazelas advindas deste nefasto ambiente. 

Hoje, atuando principalmente na execução penal, durante minhas inspeções à penitenciária me deparo com as mulheres, mães e companheiras, na fila da visita. Vejo em seus rostos as linhas marcadas pelo sofrimento e cansaço. Nas mãos, pesadas sacolas de alimentos permitidos para o parente que ali se encontra. Me pergunto: onde moram? Como chegaram aqui? Em que trabalham? Como conseguem dinheiro para estas despesas? Conseguem desfazer o vínculo com o companheiro? Sei que estas mulheres vivem diversas relações abusivas e preconceituosas. Da sociedade que não somente as julga como também as condena. Do sistema prisional, onde não são bem acolhidas. E por fim, do próprio preso. Se é mãe, carrega a culpa pelo infortúnio do filho que abusa desta condição, exigindo que ela se sacrifique, que deixe de cuidar de si própria para cuidar dele. Se companheira, quase sempre, a relação é abusiva e complexa. Não consegue desfazer o vínculo, se por amor ou medo, não sei. Tenho vontade de desenvolver um projeto multidisciplinar para ajudar esse grupo de mulheres.  

O evento trágico da queda e fratura me tirou do “centro do comando”, como a primeira ferida narcísica11: a Terra não é o centro do Universo. Mas também me tornou mais humilde, mais dependente, mais agradecida pelas pequenas coisas. Pelo alívio da dor, por conseguir me sentar diante do computador, por dar alguns passos, mesmo que de muletas. Me fez saber que não preciso mais de um grande farol para iluminar a estrada por muitos quilômetros, que uma lanterna é suficiente, já que os passos são curtos e o caminho é pequeno. 

Sempre brinquei com meus filhos dizendo que teria um blog chamado “saberes e sabores”, para compartilhar um pouquinho de Filosofia (sem pretensões) e de cozinha, minhas paixões. Comecei por aqui com um pouquinho dos saberes e da “minha filosofia”. A cozinha poderá vir em outra oportunidade. E os dissabores, não esperava acrescentar, são obras do acaso e da fatalidade, com uma pitada de descuido. Se hoje é tempo de refletir, de esperar a semente germinar, os ossos se solidificarem e de reaprender a andar. Haverá o tempo de colher, o tempo do retorno ao trabalho, a retomada dos projetos. À vida como ela era, embora modificada, afinal, como disse Heráclito12, “ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio”. 

Outono, junho 2023. 

 
 

Notas 

1. Wilza Machado Silva Lacerda foi nomeada promotora de Justiça aos 44 anos, é casada com Joel Lacerda e Silva e mãe de Otávio Machado Lacerda, Artur Machado Lacerda e Tomás Machado Lacerda. 

2. A comarca de Cruzeiro do Oeste foi criada por força da Lei Estadual nº 4237 de 20 de junho de 1960 (DOPR nº 88). Foi instalada em 25 de agosto de 1970, sendo o primeiro juiz de Direito Wilson Antonio Cury, em 1962. Pedro Soares Vieira foi designado, pelo MPPR, em 22 de agosto de 1960, para exercer, interinamente, o cargo de promotor público, ficando na comarca até 6 de fevereiro de 1961. Atualmente é comarca de entrância intermediária, com três varas judiciais, um ofício de distribuidor, contador, partidor, avaliador e depositário público, compondo o foro judicial. 

3. Sociedade dos Poetas Mortos (1989). 

4. O filósofo do período clássico grego, Platão, definiu, com seus alunos, o homem como “um bípede depenado” ou “bípede sem plumas”. Diógenes, filósofo da escola cínica, trouxe uma galinha sem penas e exclamou “eis o homem de Platão!”. 

5. Immanuel Kant, filósofo alemão (22 de abril de 1724 - 12 de fevereiro de 1804). Famoso pela sua trilogia “das Críticas”: Crítica da Razão Pura (1781), Crítica da Razão Prática (1788) e Crítica da Faculdade do Juízo (1790). A citação trazida pela autora é do segundo livro de Kant. 

6. Nomeada em 17 de fevereiro de 2009. 

7. Pensamento da linha filosófica do empirismo de John Locke (1632-1704). O filósofo afirmava que a mente é como uma folha de papel em branco, sendo preenchida pela experiência, ou seja, o conhecimento é adquirido na medida em que o indivíduo vive. 

8. John Rawls (1921-2002), filósofo norte-americano célebre por seus estudos acerca da teoria da Justiça, publicada em 1971 sob o título “Uma Teoria da Justiça”. 

9. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Martins Fontes:  São Paulo, 2000. Página 16. 

10. Nomeada para a 50ª Seção Judiciária com sede na comarca de Umuarama. 

11. O psiquiatra austríaco Sigmund Freud (1856-1939), em seu texto “Uma dificuldade no caminho da psicanálise”, de 1917, mencionou três feridas narcísicas da humanidade, ou seja, três momentos em que a ciência machucou o ego do ser humano. A primeira ferida foi com astronomia e Nicolau Copérnico e a confirmação de que a Terra (e simbolicamente o Homem) não é o centro do universo. Depois a biologia e Charles Darwin causam a segunda ferida, pois a teoria da evolução coloca o Homem na mesma condição dos outros animais, não sendo mais feito à imagem e semelhança de Deus, o criador. Por fim, a psicologia e o próprio Freud são os responsáveis pela última ferida ao ego humano quando a introdução do conceito de inconsciente demonstra que o ser humano não tem domínio completo sobre si mesmo. 

12. Heráclito de Éfeso (aproximadamente 540 a.C - 470 a.C), considerado o “pai da Dialética”. Foi um dos principais filósofos gregos da chamada era pré-socrática. 

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