Mulheres Que Correm Com Os Lobos
Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem
1. Apresentando a obra
Lançado em 1992, o clássico Mulheres Que Correm Com Os Lobos neste ano completa 29 (vinte e nove) anos, congratulado e reconhecido pela missão de despertar mulheres para sua realidade interior.
A obra de mais de 500 páginas é um grande estudo sobre feminilidade. Sua autora, Clarissa Pinkola Estés, nascida em 1945, é psicóloga de formação junguiana, estudou antropologia e por quase duas décadas pesquisou contos, fábulas, histórias folclóricas e mitos ancestrais, de diversas partes do mundo, que utilizou como base para o desenvolvimento de seu trabalho.
Ao todo são quatorze histórias, divididas em quatorze capítulos, cuja sabedoria é dissecada e interpretada pela autora, numa escrita repleta de metáforas, alegorias e insights poéticos, que acabam por movimentar o subconsciente da leitora, sem que ela perceba, convidando-a a uma verdadeira viagem pelos subterrâneos da psique.
Cada história tem enredo e personagens próprios. Identifica-se, contudo, um fio condutor que perpassa toda a obra, numa clara atmosfera de empoderamento psíquico feminino.
Diferentemente do que se possa imaginar, a abordagem não é sociológica nem política, e a análise que se segue a cada um dos contos não se desenvolve num contexto histórico específico. Essas circunstâncias cravam a atemporalidade da obra, que se firma como um grande clássico, com vocação para atravessar gerações.
Considerando sua vastidão e profundidade, debruçar-se sobre cada uma das quatorze histórias tornaria cansativa a leitura desta resenha, até porque o correto seria que cada história fosse objeto de um texto próprio. Em razão disso, o objetivo aqui é apenas o de identificar e clarear os traços mais significativos do livro, instigando a curiosidade e o espírito aventureiro, e tornando convidativa a leitura.
2. Mergulhando na obra
Como sentimos na pele, ou no pelo, a normalização do papel social da mulher moderna como a cumpridora de funções intermináveis e cumulativas tem tornado corriqueiros sintomas como depressão, medo, angústia, fragilidade, bloqueios, falta de criatividade e sentimento de vazio.
Segundo a autora, nossa cultura transformou a mulher numa espécie de "animal doméstico", absolutamente distanciado e privado de sua realidade ancestral natural, profunda e instintiva, a que chama de "self selvagem", lindamente representado no livro pela figura da loba, ou La Loba, La Que Sabé.
As mulheres que correm com os lobos, ao contrário, são justamente as mulheres (re) conectadas com sua identidade perdida, com a loba que nos habita, porque se lançaram ao autoconhecimento, à iluminação de aspectos sombrios de sua psique (urbanização psíquica), às atividades artísticas, à imaginação e à retomada da liberdade interior.
O termo "selvagem" é utilizado na obra com sua conotação original, sem as deturpações modernas que o tornam pejorativo. Selvagem é algo ou alguém que observa os ciclos naturais, que está em perfeita harmonia com a natureza e as raízes primitivas e evolutivas da espécie.
O resgate dessa essência natural, que faz a mulher livre e dona de si, é a grande missão a que, ao fim da leitura, nos sentimos impelidas, até mesmo como forma de honrar nosso feminino genuíno latente, que seguidamente grita por atenção, sem que nos permitamos perceber.
O livro ressalta o imenso poder, transgeracional, das histórias que contamos, capazes de se manter abrigadas em nossos subconscientes e comandar partes de nossa vida psíquica e de nossas crenças. Nesse contexto, o termo arquétipo, constante do subtítulo da obra e tão utilizado pela autora ao longo do texto, está intimamente relacionado às imagens que transmitimos ao contar histórias. Assim, a autora nos oportuniza reconhecer que ao longo do tempo os contos femininos se transformaram em histórias instrutivas sobre sexo, amor, casamento, parto, etc., que acabaram por nos conformar em um determinado padrão social e comportamental.
Das histórias que ouvimos na infância, como "Chapeuzinho Vermelho", a menina inocente exposta ao Lobo Mau, "Bela Adormecida", a jovem inconsciente que é beijada e salva pelo príncipe, dentre outras, extraímos arquétipos que se enraizaram no inconsciente coletivo, para usar uma expressão junguiana, e se constituem verdadeira matriz para expressão e desenvolvimento da psique.
A proposta da autora é, portanto, a utilização de arquétipos que reconectem a mulher com sua alma selvagem, por meio de histórias em que a protagonista é heroína de si mesma e vivencia processos que envolvem iniciação, superação e desenvolvimento de uma força interna esquecida ou desconhecida, mas que habita indistintamente todas as mulheres.
Para a autora, as histórias são verdadeiros "bálsamos medicinais", tão grande e intensa sua força curativa.
Dentre as histórias contadas pela autora, destaca-se o antigo conto do "Barba Azul" (capítulo 2), em que a esposa ingênua a quem é negado pelo marido provedor e aparentemente perfeito, o Barba Azul, acesso ao conhecimento (representado por uma pequena chave) é levada a recrutar forças psíquicas extremas para vencê-lo e encurralá-lo, quando ele pretendia matá-la.
Em "Vasalisa, a sabida" (capítulo 3), conhecido conto da Europa Oriental, uma menina órfã de mãe, precisa caminhar e seguir em frente pela floresta escura e amedrontadora, a fim de encontrar a megera Baba Yaga, sem conhecer as repostas para todas as perguntas, aprendendo, então, que deverá confiar em sua intuição. A intuição, aliás, foi um presente deixado por sua mãe, antes de falacer e está representada no conto por uma pequena boneca de pano que Vasalisa carrega no bolso.
Em ambas as histórias, assim como em todas as demais histórias do livro, a autora propõe a leitura subjetiva ou intrapsíquica da trama. Explico. Na leitura objetiva, se entenderia que uma esposa foi de fato manipulada, aprisionada e sufocada pelo marido Barba Azul. Numa leitura intrapsíquica do conto, por outro lado, pressupõe-se que todos os elementos e personagens da história povoam a psique de uma única mulher. O Barba Azul neste caso é o predador natural, que habita a psique de toda mulher. É o sabotador natural, que faz a mulher desacreditar-se de si mesma, de suas potencialidades, instintos, poderes, intuição, inteligência, capacidades, criatividade, etc.
Quando em "Barba Azul", o predador natural intrapsíquico tenta matar a mulher que utiliza a chave e se permite acesso ao conhecimento, podemos compreender como muitas mulheres se deixam morrer por dentro, são verdadeiramente paralisadas e mortas em vida, pelo medo, pelo apego ao outro e por sentimentos de insuficiência e incapacidade.
No caso da menina Vasalisa, a megera Baba Yaga pode ser entendida tanto como a representação da figura externa que causa medo e deve ser sabiamente enfrentada, quanto a própria identidade selvagem da menina, seu self selvagem, que precisa ser descoberto, conhecido e resgatado, para que a Vasalisa possa recrutar as forças necessárias para conviver com os males e as dificuldades do mundo. Tanto num caso quanto noutro, a megera selvagem precisa ser olhada de frente, corajosamente.
A mãe que morre no início da história, por sua vez, é a que a autora, não por acaso, chama de a-mãe-boa-demais. Essa mãe nos habita também, como mais um dos personagens intrapsíquicos da mulher. Tanto na vida real como no conto ela precisa morrer para que possamos (re)nascer como seres humanos adultos, independentes, capazes de gerir a própria vida e as próprias emoções, de maneira sadia, afastando-se de comportamentos de vitimização, auto piedade e medo paralisador. Em troca, a mãe-boa-demais deixa para a filha o melhor e mais importante dos presentes: a intuição, passada de geração a geração, que guiará a menina pela floresta escura. Belo e emblemático, quando imaginamos quantas florestas escuras já adentramos na vida, sem ao menos ter noção do próximo passo! Costumo dizer que às vezes caminhamos no escuro e sem chão, apenas guiadas por uma luz interna!
A leitura intrapsíquica dos contos seguramente é a mais rica e significativa na medida em que deposita na própria psique da mulher o poder para transformar sua realidade. Todavia, as histórias para mim também foram ilustrativas e ricas quando da leitura objetiva dos fatos, já que comumente em nossas vidas estamos diante de agressores (físicos ou emocionais), manipuladores e opressores externos, que precisamos reconhecer, vencer ou superar. Há muitos Barba Azul por aí, que oferecem toda a proteção, conforto e segurança material mas exigem em troca, ainda que sutil e veladamente, a resignação, o controle emocional e o encolhimento da mulher.
A grande sacada talvez seja reconhecer que a cada agressor externo há um correspondente agressor interno, intrapsíquico, que coloca a mulher em situação de exposição e a faz permitir, sem que perceba, a aproximação e permanência do agressor externo, justamente por sua condição de fragilidade emocional e insuficiência dos sinalizadores internos de perigo.
A boa notícia é que a entrada num processo persistente de autoconhecimento e observação interna pode levar à supremacia dos personagens psíquicos que representam força, resistência, autoconfiança e autoestima, os chamados agentes de transformação da psique, em detrimento do predador natural, que acaba sendo encurralado e detido numa zona menos importante, mas consciente da psique. Trazendo o predador natural do fundo do inconsciente para o consciente, o tornamos visível e podemos enfrentá-lo e dominá-lo sempre que ele pretender se restabelecer, conforme acredita a autora.
É importante frisar que o resgate de nossa essência e a construção de um novo self nem de longe significa transformar-se numa mulher diferente da que somos. Muito pelo contrário, trata-se de permitir-se transformar na mulher que realmente somos e que esteve escondida, morta em vida, ou que teve partes importantes mutiladas ao longo de sua trajetória. Trata-se de reconhecer a submissão que há para consigo própria, para muito além da submissão que há para com o mundo.
A menção à mutilação de partes de si me faz lembrar o conto da "donzela sem mãos" (capítulo 14). Para mim, muito marcante e instigante, porque trata, dentre outros aspectos, da capacidade de resistência da mulher, que deve ser desenvolvida e fortalecida ao longo da vida, num contraponto óbvio à fragilidade tão disseminada culturalmente. Nas palavras da autora, "todas essas descidas, perdas, descobertas e fortalecimento ilustram a iniciação perpétua da mulher na renovação do aspecto selvagem”.
Muitas vezes é estarrecedor perceber como a mulher intelectualizada e com boa capacidade de raciocínio e percepção da vida é submetida à cultura predominante, ao ego, às crenças limitantes e mesmo ao intelecto, dela própria e dos outros, deixando-se, por lapsos de autoconhecimento ou de consciência, afastar cada vez mais de suas potencialidades naturais, seus desejos, seus instintos e seus sentimentos viscerais. "Vida escassa, alma deserta", nas palavras da autora.
A verdade é que nos "ensinaram a ter vergonha de nosso desejo ardente pelo que é selvagem" e que sem nossa permissão e a necessária boa disposição para percorrer caminhos interiores diferentes nada poderá ser transformado, nem em nós mesmas, nem, arrisco dizer, no mundo.
Para mim o insight brilhante que Mulheres Que Correm Com Os Lobos me permitiu vivenciar é no sentido de que a verdadeira transformação que almejamos como mulheres não provém da sociedade, dos movimentos sociais, do ativismo, nem necessariamente da ressignificação dos papeis masculino e feminino, mas, sim, do interior da própria mulher.
Digo isto com segurança quando observo que, passados mais de cinquenta anos da chamada revolução sexual, é ainda normalizado socialmente o uso de expressões grotescas, inclusive pelas próprias mulheres, frise-se, que insinuam ser a relação sexual um ato unilateral em que cabe à mulher fornecer algo enquanto ao homem cabe receber algo.
Na realidade, qualquer espécie de relação sadia entre seres humanos deve pressupor, de ambos os lados, doses equivalentes de vontade de estar ali e de se comprometer consigo mesmo e com o outro.
Se ainda hoje a mulher, visivelmente desconectada de seus desejos e instintos mais naturais, afastada de sua essência selvagem, de seu poder criativo e de sua liberdade de fazer escolhas, entende e procede de forma a acreditar que estar a serviço do masculino, em detrimento dela própria, é seu papel natural, posso crer que a revolução sexual, base teórica e comportamental em que se alicerça grande parte da liberdade feminina adquirida, serviu e ainda serve prioritariamente ao homem.
De nada adianta a liberdade física se ela não é acompanhada de verdadeira liberdade emocional e psíquica. Cabe à mulher, portanto, para além dos contextos históricos objetivos, apropriar-se de si mesma, de seus anseios, de suas escolhas e da profundidade de seu interior. Aliás, Clarissa é magistral quando afirma, ainda no capítulo 14, que "a verdadeira satisfação consiste em nascer na realidade interior." Quem já teve a oportunidade de vivenciar a sensação do "(re) nascimento interior" sabe exatamente o quanto ele significa na escala do encantamento e contentamento com a vida, pouco dependendo das condições externas.
Mulheres Que Correm Com Os Lobos é muito mais que um convite ao auto resgate, é uma provocação, uma maneira delicada e sutil de causar indignação pelo que deixamos de ser, pelo que esquecemos, pelo que deixamos de dar a nós mesmas, pelos pactos inconscientes que fazemos ao longo da vida em prol de segurança e estabilidade, enquanto nossas almas clamam por vida.
Neste ponto, importa falar dos ossos. Em suas alegorias e incursões poéticas cirurgicamente costuradas nas histórias que conta, a autora faz constantes remissões aos ossos, como estruturas que, mesmo depois da morte, muito dificilmente são destruídas. Assim, em seus ciclos de vida-morte-vida, a mulher precisa escavar profundamente seu inconsciente até encontrar os ossos daquilo tudo que morreu dentro de si. Esse é o aspecto substancial do primeiro capítulo, que acaba permeando todo o livro, e trata da "Ressurreição da Mulher Selvagem", La Loba, a Mulher-Lobo, que a partir do esqueleto é reconstruída na carne.
Os ossos são as pistas indestrutíveis dos sonhos, dos desejos relegados que poderão ser resgatados e reconstruídos. Talvez a aula de pintura, ou a aula de canto, talvez o caderno de poesias escondido propositalmente por duvidar da qualidade dos versos, talvez a vida social renunciada, a vida pública abandonada, os estudos abdicados, a liberdade desencorajada, talvez o proibido olhar sobre os relacionamentos desvitalizados, o amor verdadeiro desacreditado por medo de rejeição. Intensas escavações psíquico-arqueológicas merecem ser feitas no subterrâneo feminino, pois certamente tesouros serão encontrados sob a forma de desejos e planos não realizados.
Nesse processo de auto resgate e de reconhecimento da própria identidade, a direção correta é sempre para o fundo, não para cima ou para frente. Para o fundo! Essa constatação é lindíssima, porque a mulher não se encontrará fora de si, não se identificará nos outros, assim como não deve esperar que os outros satisfaçam seus desejos e realizem seus sonhos. Só ela poderá fazer isso. Só ela poderá permitir-se.
A meditação, as artes, a relação com a natureza, dentre outros, são para a autora caminhos para a manifestação da velha sabedoria esquecida, revertendo o processo que minou a vitalidade da mulher ao longo de muitos séculos de civilização, fundados no temor aos instintos femininos e na negação dos conhecimentos ancestrais.
Não há que nos enganarmos, contudo. Nem todas estão preparadas para a descida ao subterrâneo e para o início das escavações arqueológicas. O momento é individual. Muitas desistem antes de concluir os trabalhos, para anos depois começarem novamente do início. No meu entender, é possível que seja necessário o esgotamento das tentativas de sobrevivência e vida feliz na superfície, para então realmente se compreender a utilidade da descida que, para algumas, pode envolver dor e perdas.
Para Clarissa "é preciso que haja um pouco de sangue derramado em cada história, se quisermos que ela tenha função balsâmica." Acredito que é um modo de a autora avisar que precisamos, no sentido figurado, derramar também um pouco de sangue em nossas histórias reais para que possamos transformar nossas vidas.
Nada substitui nem diminui, no entanto, a alegria de encontrar sua própria identidade, de saber exatamente quem se é, do que se gosta, o que se almeja. A dor da descida é sempre recompensada pelo real encontro consigo mesma!
3. Como e quando ler
Já se falou um pouco sobre o momento da descida. Ele varia de pessoa para pessoa. Às vezes não há intelecto ou palavras que exprimam o momento ou estimulem a coragem. É preciso simplesmente mergulhar, quando se sente que é a hora.
Começar a ler o livro é o início de uma grande aventura cujo fim não se pode, nem se deve, estipular.
Mulheres Que Correm Com Os Lobos é uma obra para ser lida com calma, cuidado e longas pausas para reflexão, sempre observando o seu próprio ritmo de leitura e processamento interno. Como Clarissa revela, "deve-se deitar com a história", pois se ela ficar apenas na superfície não há contato real com o arquétipo e não haverá possibilidade de transformação.
É preciso sorver e degustar cada gole de insight, com a profundidade que os temas merecem.
É preciso desvendar os mistérios da obra, que caminha frequentemente junto com o desenrolar dos mistérios psíquicos individuais. Por isso costuma-se dizer que a protagonista é a própria leitora.
Comumente há pessoas que lutam com a leitura e se frustram por não conseguir finalizá-la. Acredito que se isso acontece talvez não seja por acaso. Pode ser que num outro momento, às vezes vários anos depois, o livro volte a suscitar interesse. Esse foi, particularmente, o meu caso, porque, embora desde logo tenha amado a leitura, simplesmente parei de ler para voltar vários anos mais tarde.
Além de delicada e sensível, a obra é complexa, repleta de figuras de linguagem e alegorias que a tornam poética para alguns, enquanto afugenta outros.
Se a leitura trouxer à superfície tristezas, perguntas, anseios ou outros sentimentos incomuns, é importante acolhê-los, porque são bem-vindos e denotam a existência de uma vida subterrânea pulsante que clama por atenção.
De fato, as histórias trazem o "resgate de impulsos psíquicos perdidos", puxados a partir das raízes, e acredito que somente se deve descansar um pouco quando "você mesma esteja em flor", mas ainda assim os "ciclos de vida-morte-vida" serão uma constante, e começa-se a aprender que a morte sempre poderá trazer em si a semente da vida.
Enfim, acredito que é uma leitura para uma vida inteira e, mesmo depois de finalizada, deve ser revisitada sempre que possível, principalmente nos momentos de maiores desafios pessoais.
Se a leitura for realizada e sorvida com a alma, das páginas de Clarissa brotará uma força incrível, devastadora, mas também pacificadora, que não poderá ser traduzida em palavras.
4. O que fica da obra
A mulher selvagem não precisa sair uivando por aí, nem precisa deixar o companheiro ou o trabalho, se esse não for o desejo de sua alma. Na realidade, o que ela sempre deixou foi somente ela mesma, em algum lugar longínquo de seu passado, e precisa agora começar reconhecendo isso.
Os lobos, como as mulheres, são gregários por natureza, curiosos, dotados de grande resistência e força. Ficam muito bem em grupos, mas sabem da importância de estar isolados.
Na loba, a devoção ao parceiro e à comunidade, que vêm junto com a graça e a ferocidade, jamais pressupõe o abandono de si própria, pois isto seria contrário às leis da natureza.
Seguindo os rastros dos lobos, ou melhor, da loba, o livro transcorre numa atmosfera de amorosidade em relação a si mesma e ao parceiro de vida da mulher. O amor incondicional a si própria e ao outro permite o nascer de "uma força amorosa e milagrosa para além dos limites do ego".
Deixa-se morrer o velho self, condicionado aos apegos do ego, e inicia-se a construção de um novo self, o self intuitivo, selvagem.
A meu ver, este processo exige muita vigilância, porque o sistema dominante de forças sempre vai tender a nos puxar para longe de nossa identidade, nos convidando a aderir novamente a pactos onde são medidos perdas e ganhos, bem como a adotar condutas massificadas em busca da sensação de pertencimento, ou a curvar-se ao sistema de expectativas reinante, que muitas vezes pouco, ou nada, conversa com nossa alma.
Segundo a teoria junguiana adotada na obra, nosso subconsciente é super habitado! Nele residem arquétipos variados, oriundos do inconsciente coletivo, que representam a realidade de uma dada época ou cultura. Trazer esses "personagens" à consciência e recrutá-los somente quando forem eventualmente úteis a um determinado momento ou ao desempenho de uma dada tarefa ou papel é nossa responsabilidade.
Manter o predador natural, aquele aspecto da psique contrário à natureza, que se opõe ao desenvolvimento e tenta nos isolar de nossos poderes de direito, dominado e acuado é outra missão que somente cada mulher pode realizar para si.
Acredito, particularmente, que desenvolver a capacidade de gerir a própria psique abre caminhos riquíssimos na vida real, já que tendemos a criar no mundo externo uma realidade de vida tal e qual projetamos na nossa psique, assim como reproduzimos internamente o mundo real tal e qual o vemos. Trata-se de uma relação de interdependência recíproca. Às vezes me vejo pasmada por ter descoberto isso há bem pouco tempo, assim como me surpreendo ao perceber que a grande maioria das pessoas simplesmente ignora sua vida psíquica, e segue vivendo sempre no chamado "modo automático".
Sobre os argumentos corriqueiramente utilizados por todas nós, mulheres, para justificar o auto descaso, vejo que a justificativa objetiva com maior verossimilhança na atualidade é a falta de tempo. Há muito acreditei nela, até porque seguramente já a adotei, mas hoje vejo que não passa de uma fuga inconsciente, porque sempre há tempo para tudo que consideramos verdadeiramente importante e elegemos como prioridade.
Outro ponto importante é que a mulher selvagem, (re) construída e resgatada por meio da imaginação, da intuição, da arte, da meditação, do desenvolvimento da autoestima e do autoconhecimento, não há de guardar seus novos conhecimentos para si. Ela deve sair ao mundo e deixar fundas pegadas por onde passar, pois sua atitude no mundo não deve ser inferior ao seu nível de conhecimento. É o que adverte a autora.
A loba, no entanto, sabe bem o momento de ir e o momento de recuar. Sua sabedoria natural a torna capaz de ritmar a marcha de maneira que consiga se colocar no mundo e encontrar seus espaços, sem ferir-se e sem ferir os outros.
Ainda que não estejamos no momento de abraçá-la, o que considero importante deixar cravado aqui é que a força selvagem de nossa psique (a mulher selvagem) não nos abandona jamais. Ela nos segue como sombra. Ela aparece em sonhos, em histórias, na poesia e em outras situações variadas, "pois quer ver se já estamos prontas para nos unir a ela". Importante, pois, olhar com cuidado para nossas sombras, dificuldades e aparentes defeitos, pois ali pode estar a mulher selvagem, aguardando para se olhada.
Pode levar dez, vinte ou trinta anos, mas tenho a certeza de que assim que você chamar a mulher selvagem ela aparecerá, errática no começo, mas majestosa, vicejante e fortalecida depois de bem nutrida por você.
Consigo imaginar a lindeza das novas Mulheres-Lobas se encontrando, não importa a idade que tenham, aprendendo juntas a ver além da ilusão, a criar sensibilidades internas e a confiar em seus sentimentos mais viscerais.
Eu as vejo compreendendo que "seu poder sustenta todos os mundos", porque assim sempre foi, praticando o auto perdão, aceitando seus corpos e curando as cicatrizes da alma para poderem correr soltas e livres pelo mundo bom que estão finalmente criando.
Afinal, independentemente de religião ou crenças, deveríamos estar todas e todos aptos a reconhecer que a essência do ser humano é a liberdade!
Lucimara Rocha Ernlund, Promotora de Justiça.