No último mês, mais de 300 pessoas, representando o Ministério Público de todo o país, reuniram-se em Brasília para prestigiar o evento da CONAMP Mulher. Foram dois dias de palestras que abordaram a desigualdade estrutural de gênero e propostas do sistema de Justiça e da iniciativa privada para alcançar esse tão caro e repisado objetivo constitucional de igualdade entre homens e mulheres. No público, e também nas mesas principais, mais de vinte associadas e associados da APMP estiveram presentes.
Então, no dia 30 de junho de 2023, no Paraná, Symara Motter, foi eleita Presidenta da Associação Paranaense do Ministério Público, com 753 votos. A segunda a presidir a APMP, após quatorze anos da gestão de Maria Tereza Uille Gomes.
Os acontecimentos remetem ao ano de 2018. Naquela época, já falávamos em igualdade de gênero. Mas com uma certa timidez, muito cuidado para não ofender quem nos ouvisse dizer que as mulheres do MP não possuíam as mesmas oportunidades que os homens. Se não compúnhamos mesas importantes nos eventos, era, “possivelmente”, por questões circunstanciais – afinal, as instituições escolhidas pelos cerimoniais não eram chefiadas por mulheres. Se os cargos importantes eram destinados, na maioria, a homens, talvez fosse porque não possuíssemos a mesma disponibilidade ou ambição no investimento de tempo à carreira (será? Contém ironia, tá?). Se os palestrantes e componentes nas bancas de concurso público eram em sua maioria homens, talvez fosse porque (quem sabe?) não inexistiam, entre nós mulheres, profissionais com títulos acadêmicos e preparo intelectual suficiente para garantir a igualdade de gênero (será? E se sim… por que será?). Naquele ano (2018), Promotoras de vários Estados se reuniram pela primeira vez em São Paulo para tentar entender o motivo de tantas desigualdades. Foi quando começou o Movimento Nacional de Mulheres do MP. Na volta de tal encontro, o então presidente da APMP, Claudio Franco Félix, criou a Diretoria de Mulheres Associadas – que foi a primeira Diretoria de Mulheres formalmente prevista em Estatuto entre as Associações do Ministério Público. Nayani Kelly Garcia assumiu o desafio à frente de tal Diretoria e logo mais, tornou-se a primeira coordenadora da recém-criada Comissão de Mulheres da CONAMP. Essa mesma Comissão que organizou, neste ano, o gigantesco Congresso em Brasília, de que falamos no início do texto.
Foram muitos os desafios, desgastes e embates. Mas aos poucos, fomos compreendo, e fazendo entenderem, com muita reflexão, que nossas ausências não se explicavam por supostas faltas de capacidade ou disponibilidade (lógico que não), mas por uma assimetria nas relações de poder, que dificulta de várias formas, para as mulheres, o acesso às oportunidades em espaços públicos. Silvia Frederici ilustra muito bem, em seu livro “O Calibã e a Bruxa”¹, que, entre os séculos XVI e XVIII houve um processo de erosão nos direitos das mulheres, que passaram a ser expulsas de espaços públicos e de funções mais bem remuneradas ou intelectualizadas; tiveram seus corpos subjugados e condutas policiadas, para que permanecessem restritas às funções domésticas e menos valorizadas pela sociedade.
Mas a sociedade vem, aos poucos, reconstruindo o espaço de igualdade que deve ser garantido às mulheres. E em paralelo, as mulheres do Ministério Público, com destaque para as do Paraná, vêm se mostrando valentes e fortes em tais conquistas.
Nesta gestão que se finda, podemos dizer que caminhamos com passos largos. Em uma Associação que garantiu, desde a formação da chapa da diretoria até os espaços em eventos, a paridade de gênero, consolidamos o banco de currículos das mulheres do Ministério Público, e já não se pode mais afirmar que não estudamos o suficiente para não ocuparmos espaços nas mesas de eventos ou nas bancas de concurso. Por meio da Diretoria de Mulheres, nossas associadas tiveram espaço na mídia para escrever, posicionar-se, defender perante a sociedade, no bojo de jornais de grande circulação, suas ideias e pensamentos acerca dos mais diversos temas de interesse social. Noticiamos os feitos e conquistas das associadas, que, no exercício de suas funções e também de seus talentos extraprofissionais, mostraram-se potentes, dinâmicas e capazes de mudar realidades e mundos, por todo o Estado do Paraná.
A Ministra Carmem Lucia, na palestra de abertura do Congresso da CONAMP Mulher, trouxe a figura dos “Clubes do Charuto” – que são espaços onde os homens se reúnem (apenas eles) e estreitam relações, que posteriormente servirão para facilitar acesso às funções importantes no sistema de Justiça. Mas a APMP adiantou-se a tais reflexões, e desde 2018 promove atividades e cria espaços voltados para a confraternização e fortalecimento de vínculos entre as associadas - retomando, com isso, a parceria e a união entre as mulheres. União essa que já representou a força de nossa resistência, mas foi por séculos boicotada, como forma de nos enfraquecer. Novamente FREDERICI lembra que, na Inglaterra, as mulheres eram orientadas a não se reunirem com suas amigas, em uma época em que a palavra “gossip”, que significava “amiga”, ganhou a conotação depreciativa de “fofoca”².
Também nos reunimos para refletir sobre questões de nossos universos, das diferentes gerações. Escrevemos História, artigos científicos, publicamos livros e provocamos a reflexão de toda a carreira. Reunimo-nos (e choramos) juntas para assistir ao filme “Entre Mulheres”, e compreendemos a força que a mulher possui quando não aceita e se posiciona com coragem diante de injustiças e crueldades formatadas no pensamento machista e patriarcal. Buscamos nos aprofundar nos estudos de gênero, com a presença da historiadora Mary Del Piore, que falou sobre a história da mulher no Brasil. Tivemos as presenças potentes de Ivana Farina e Chimely Marcon, para enriquecer nossas reflexões sobre a necessária perspectiva de gênero em nossas atuações profissionais e em nossas instituições. Ainda somos as principais cuidadoras de nossos filhos e pares; por isso, também paramos para compreender com a maiores autoridades no assunto, como promover a inclusão. Batalhamos e conquistamos a regulamentação das condições especiais de trabalho para lactantes. Por provocação desta Diretoria e Associação, o Ministério Público do Paraná possui um Núcleo de Prevenção ao Assédio Moral e Sexual e à Discriminação e um Comitê de Gênero – passos importantes para se começar a pensar a política de igualdade de gênero no MPPR.
A homenageada e entrevistada deste mês, Camille Crippa, cuja mãe foi uma das primeiras Promotoras de Justiça do Paraná, não deixa qualquer dúvida sobre o quanto nós, mulheres, somos capazes de nos dedicar à carreira (e dedicar nossas vidas a ela), e merecemos ser valorizadas por isso, como nossos colegas homens têm sido há tanto tempo. A carreira de Camille e a importância do seu trabalho no interior do Estado do Paraná merece ser reconhecida e destacada, porque inspira, ao resgatar as raízes mais puras do Ministério Público Brasileiro – aquelas insculpidas na Carta de Curitiba e captadas pela Constituição Federal de 1988.
Mas a desigualdade ainda impera com a falta das lentes de gênero, inclusive no Ministério Público do Paraná. As regras de cerimonial ainda prevalecem sobre a necessidade de marcar a igualdade de gênero nas mesas importantes dos eventos do Ministério Público. Nem sempre nos vemos em condições de igualdade nas bancas de concurso.
No âmbito institucional, nosso Ministério Público ainda se encontra distante das disposições estabelecidas pela Resolução nº 259/2023 do CNMP, que institui a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Ministério Público. Não apenas porque não adotamos a linguagem inclusiva e sensível ao gênero, conforme estabelece seu artigo 2º, § 1º, III, mas porque estamos longe da adequação tecnológica e estrutural para a realização de ações para a igualdade. Não temos recursos, nem propostas para o aprofundamento de pesquisas que identifiquem as causas de desigualdade de gênero na carreira ou ações afirmativas que estimulem, incentivem ou destaquem a participação feminina em todos os espaços institucionais. O olhar de gênero para dentro do Ministério Público do Paraná ainda precisa crescer, e muito.
Mas é possível afirmar que, com certeza, desde 2018, avançamos. Temos instrumentos, espaços de discussão e avanços conquistados. Por outro lado, na APMP, já podemos dizer que a perspectiva de gênero encontra-se mais presente do que nunca. Trata-se de consequência da mobilização de nossas associadas, e também dos espaços que nos foram reservados para que pudéssemos nos reunir, refletir, e até denunciar (a Diretoria de Mulheres é um desses importantes espaços).
Por isso, estamos confiantes de que os próximos passos na direção da equidade, que serão dados por todos e todas que tanto têm se dedicado às causas de Justiça e da Igualdade (e é importante destacar que as conquistas são resultados da atuação parceira de mulheres e homens), serão imensos. Nossa Diretoria de Mulheres, como parte da APMP, continuará na forte crença do diálogo, e buscará agregar e somar todas as vozes das diversidades existentes na Instituição. Os desafios são gigantes, mas nossas forças e esperanças por um Ministério Público mais igual são ainda maiores.
¹ FREDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. p. 199-200.
² FREDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. p. 200.