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Ex-Presidente da APMP publica artigo em defesa de professora universitária

Confira na íntegra o conteúdo divulgado no jornal Gazeta do Povo
16 de setembro de 2025

Agressão à professora Melina Fachin: uma ameaça à democracia, por Symara Motter.
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"A agressão sofrida pela professora e advogada Melina Girardi Fachin, diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, é um episódio que não pode ser relativizado. Trata-se de uma violência que não atinge apenas uma mulher em sua individualidade, mas representa um ataque direto às instituições, à liberdade acadêmica e ao convívio democrático. Cusparadas e xingamentos como “lixo comunista” não são atos isolados de intolerância: são manifestações de um fenômeno grave, a violência política de gênero, que se alastra no Brasil e mina silenciosamente as bases do Estado de Direito. 

A pronta reação de entidades e coletivos de mulheres demonstrou que a sociedade civil não permanecerá inerte diante de retrocessos. É evidente intolerância que se instala no serviço público quando mulheres ousam ocupar espaços de liderança. Grupos organizados como o Movimento Nacional de Mulheres do Ministério Público, Antígonas e o Todas da Lei também se manifestaram de forma firme e solidária, reforçando que este caso não é um episódio isolado, mas expressão de uma prática reiterada de hostilidade e violência contra mulheres em espaços públicos de poder. Essas vozes ecoam a urgência de uma reação coletiva e estruturada. 

O Brasil, infelizmente, vive hoje um cenário de escalada da violência política contra mulheres. Esse fenômeno se explica por três fatores principais. Primeiro, porque à medida que mais mulheres ocupam espaços de poder, mais se tornam alvo de ataques antes inexistentes. Segundo, porque suas vozes públicas e mandatos disruptivos são vistos como ameaça por quem deseja preservar o status quo e as desigualdades. Terceiro, porque a presença feminina amplia o debate sobre a igualdade, o que provoca reações violentas de quem não tolera mudanças na lógica de dominação.

Esse contexto é agravado pela sub-representação feminina. Somos 51% da população e 53% do eleitorado, mas as mulheres governam apenas 12% dos municípios brasileiros. As mulheres negras, que representam 28% da população, estão à frente de somente 4% das prefeituras. No Congresso, ocupamos 17,7% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 12,3% no Senado, sendo que apenas uma senadora se declara negra. O Brasil está abaixo da média mundial, que é de 26,5% de mulheres nos parlamentos. Esses números revelam o tamanho do desafio e explicam por que a violência política se torna instrumento de contenção: ela visa expulsar mulheres da arena pública, desencorajar candidaturas e deslegitimar vozes femininas. A violência política é também um desestímulo para que as mulheres continuem a ocupar os cargos de liderança já conquistados.

Ciente desse quadro, o legislador brasileiro aprovou, ainda que tardiamente, a Lei 14.192/2021, que criminaliza a violência política de gênero e cria o tipo penal do art. 326-B do Código Eleitoral. A norma protege candidatas e detentoras de mandato, e prevê agravantes para crimes de injúria, calúnia e difamação quando praticados com viés de gênero. Somou-se a isso o art. 359-P do Código Penal, que pune com reclusão de três a seis anos quem restringe, impede ou dificulta, mediante violência, o exercício de direitos políticos em razão de sexo, raça ou etnia. 

Apesar desse avanço, o tipo penal é ainda muito restritivo, pois não alcança mulheres que exercem papéis de liderança fora dos cargos eletivos. O caso de Melina Fachin evidencia essa lacuna: lideranças acadêmicas, comunitárias, sindicais, ambientais e de coletivos sociais também estão expostas à violência política, mas não são plenamente protegidas pela lei. É urgente ampliar o alcance do tipo penal para que a proteção seja integral e compatível com a realidade. 

Ao mesmo tempo, é importante reconhecer que há uma tendência mundial e local de arrefecimento da violência política contra mulheres, fruto da mobilização de coletivos femininos, da pressão internacional e da criação de marcos normativos que dão visibilidade ao problema. Ainda é cedo para falar em superação, mas há sinais de que a consciência social está crescendo e que a intolerância já não passa despercebida ou impune como antes.

É importante frisar que a violência política não se limita ao gênero, mas perpassa raça, idade, território, condição social e orientação sexual. Ela é interseccional e atinge com maior intensidade mulheres negras, indígenas, periféricas e aquelas que defendem pautas progressistas. É um mecanismo de exclusão que busca intimidar, minar, silenciar. Quando não consegue impedir a participação, tenta corroê-la até o limite, chegando em casos extremos ao feminicídio político, como o que vitimou Marielle Franco. 

Ao solidarizar-me com a professora Melina Fachin, reafirmo uma certeza que tenho compartilhado em todas as manifestações sobre o tema: a violência política contra as mulheres é profundamente antidemocrática. Ela ameaça a manutenção de conquistas históricas, como o direito ao voto feminino, que completa 93 anos em 2025. Ela corrói a possibilidade de uma democracia plural, inclusiva e verdadeiramente representativa. 

Não é um caso a ser tratado como uma mera agressão isolada. É um alerta. Enquanto promotora de Justiça, reitero a importância de que os órgãos competentes investiguem e punam o agressor, mas também de que a sociedade se mobilize para proteger as mulheres que ousam ocupar espaços de poder. A democracia brasileira só será plena quando nenhuma mulher for obrigada a escolher entre participar da vida pública e preservar sua dignidade ou sua segurança.

Que o ataque à professora Melina Fachin sirva como chamado à ação: contra a intolerância, contra a violência, contra o retrocesso. E a favor de um futuro no qual sejamos, como sonhou Rosa Luxemburgo, socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres."

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