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Opinião: Papel do Ministério Público de 1º grau frente ao julgamento do RE 635.659-SP

Leia o artigo da associada Suzane Maria Carvalho do Prado
23 de julho de 2024

No dia 26 de junho de 2024, terminou o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, conhecido como da “liberação da maconha”, mas destinado a fixar se o porte da droga para uso próprio é penalmente relevante.

Em resumo, ficou decidido:

(a) somente o porte de cannabis sativa L., maconha, até 40 gramas ou 6 plantas fêmeas, para uso próprio, deixa de ser típico. Em outras palavras, para as demais drogas, como o crack, por exemplo, continua a vedação penal do artigo 28 da Lei 11.343/2006, independente da quantidade;

(b) Ainda assim, os 40 gramas foram fixados como fator de presunção relativa para tratar o portador da maconha como usuário; sendo que, em havendo outros elementos de prova que levem à conclusão de tratar-se de tráfico a posse de 40 gramas ou menos (como uma interceptação telefônica que indique o portador como sendo comerciante da droga, por exemplo), pode ser feita a prisão em flagrante;

(c) flagrado de posse de droga, o usuário será encaminhado ao Juízo para aplicação das medidas de natureza não-penal (artigo 28, I e III, Lei 11.343/2006);

(d) enquanto não regulamentado o novo trato dos usuários, mantém-se a competência dos Juizados Especiais Criminais (JECr) — embora o porte de droga, agora, seja uma infração não-penal, de trato administrativo —, com a sistemática atual.

Vai daí que, agora, temos uma infração administrativa com procedimento em curso, excepcionalmente até que seja normatizado, nos JECrim. Sendo “infração administrativa”, tudo indica, não é mais admitida a busca pessoal nos termos do artigo 240 e seguintes do Código de Processo Penal (CPP). Assim, somente serão encaminhados aos JECrim os usuários flagrados fazendo uso ou com porte ostensivo da droga ou, ainda, se descobertos quando da diligência para elucidar um delito.

Dito isto, mesmo sem publicação oficial do acórdão, face ao publicado na página oficial do Supremo Tribunal Federal (STF), acredita-se que, desde logo, podem ser invocados os efeitos da decisão. Assim, sabe-se que o julgado alcançará todos os procedimentos nos quais o objeto material seja cannabis sativa L., em quantia inferior a 40 gramas. De pronto, duas questões práticas se colocam:

(a) os fatos ocorridos antes do julgamento do RE 635.659 foram despenalizados ou se deu a abolitio criminis?

(b) qual é o papel do Ministério Público (MP), considerando que a partir do julgado do RE 635.659 o porte de maconha para uso próprio passou a ser infração de caráter administrativo?

Sobre a primeira indagação, socorre-se ao artigo 2º do Código Penal (CP), o qual dispõe que “ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”. No caso concreto, em vez de uma lei “deixando de considerar crime”, temos uma decisão do STF considerando atípico o fato de portar maconha para uso próprio.

Sendo assim, é defensável o uso da analogia in bonan parte e considerar a decisão do STF que descriminalizou o porte de até 40 gramas de maconha ou 6 plantas fêmeas, para uso próprio, como abolitio criminis e encerrar todos os processos em andamento anteriores a 26 de junho de 2024 (ou ao dia de publicação do acórdão do julgamento?). A propósito, a ementa do voto do ministro Luís Roberto Barroso no referido julgamento [1], reforçando o artigo 386, III, do CPP, fundamenta a absolvição na atipicidade da conduta. Atípico o fato, o arquivamento se impõe.

Apenas como exercício argumentativo, considerando que o tipo do artigo 28 da Lei 11.343/2006 foi mantido, mas deslocado para o campo cível-administrativo, seria possível aplicar o princípio da continuidade típico-normativa para fins de alcance da conduta praticada antes de 26 de junho de 2024 pelo sistema penal? A resposta parece simples: não; porque sequer deslocamento da tipicidade da conduta de um artigo para outro mais recente houve; manteve-se o artigo, deslocou-se a competência e as instâncias (penal e administrativa são autônomas).

Portanto, em nosso sentir, é de se aplicar o artigo 2º, CP, a todos os fatos praticados antes do julgamento do multicitado RE, promovendo o arquivamento naqueles que aguardam a audiência preliminar (artigo 28, CPP), a extinção da punibilidade naqueles em que houve transação ou já com sentença prolatada (artigo 107, III, CP, por analogia) ou pedindo a rejeição da denúncia com base no artigo 386, III, CPP se pendente o recebimento da peça. Em suma, acabaram-se os efeitos penais para os fatos anteriores a 26 de junho de 2024 (tomado como data início dos efeitos da decisão).

E para os fatos posteriores, dado que o procedimento foi mantido nos JECrim, com trâmite administrativo, até que nova regulamentação seja editada, seguimos para a segunda questão: qual será o papel do MP nesse procedimento, considerando que a partir do julgado do RE 635.659 o porte de maconha para uso próprio passou a ser infração administrativa?

No item 2 do acórdão do julgamento do RE 635.659, dispôs-se que o procedimento para a aplicação das sanções administrativas será “de natureza não penal e sem nenhuma repercussão criminal para a conduta”. Ou seja, se não há mais qualquer interesse de agir para o MP na esfera penal, se fosse atuar no feito seria sob o prisma de fiscal da ordem jurídica (artigo 127 da CF).

Nesse sentido, o artigo 178 do Código de Processo Civil, ao tratar da atribuição do MP na seara cível, estabelece que ela se dá: “(…) nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição e nos processos que envolvam: I – interesse público ou social; II – interesse de incapaz; III – litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana. Parágrafo único. A participação da Fazenda Pública não configura, por si só, hipótese de intervenção do Ministério Público”.

Aqui, em tese, o infrator é capaz e não se cogita do interesse público ou social na aplicação de sanções administrativas, uma vez que, se assim o fosse, iria em desacordo com os próprios fundamentos que levaram ao reconhecimento formal da inconstitucionalidade do dispositivo, quais sejam a falta de lesividade da conduta e a violação ao direito à vida privada, à intimidade.

No voto do relator Gilmar Mendes, acompanhado pela maioria dos ministros, destacou-se que “dar tratamento criminal ao uso de drogas é medida que ofende, de forma desproporcional, o direito à vida privada e à autodeterminação”. E mais, que “o uso privado de drogas é conduta que coloca em risco a pessoa do usuário (…) a relevância criminal da posse para consumo pessoal dependeria, assim, da validade da incriminação da autolesão. E a autolesão é criminalmente irrelevante” [2].

Aplicação de sanções administrativas

Ainda, para ilustrar a falta de interesse público ou social, como exemplo, tomam-se as multas por infrações de trânsito da Lei 9.503/97; embora o seu fim seja preservar a segurança viária, o que, de fato, afeta a coletividade, não há intervenção do MP no procedimento de aplicação das multas administrativas.

Assim, é de se aplicar o mesmo raciocínio na aplicação das sanções administrativas do artigo 28. Ser a matéria (atendimento ao usuário) de saúde pública, por si só, não justifica a intervenção ministerial; o MP já atua nessa área, de forma prioritária, na fiscalização dos instrumentos de planejamento e de gestão do SUS e na aplicação correta do orçamento público e de verbas destinadas ao SUS, por exemplo. Doutro lado, o CNMP editou a Recomendação nº 34, de 5 de abril de 2016, a qual trata da atuação do Ministério Público como órgão interveniente no processo civil e lista os casos têm relevância social:

Art. 5º Além dos casos que tenham previsão legal específica, destaca-se de relevância social, nos termos do art. 1º, inciso II, os seguintes casos: I – ações que visem à prática de ato simulado ou à obtenção de fim proibido por lei; II – normatização de serviços públicos; III – licitações e contratos administrativos; IV – ações de improbidade administrativa; V – os direitos assegurados aos indígenas e às minorias; VI – licenciamento ambiental e infrações ambientais; VII – direito econômico e direitos coletivos dos consumidores; VIII – os direitos dos menores, dos incapazes e dos idosos em situação de vulnerabilidade; IX – ações relativas ao estado de filiação ainda que as partes envolvidas sejam maiores e capazes; (Revogado pela Recomendação n° 37, de 13 de junho de 2016) X – ações que envolvam acidentes de trabalho, quando o dano tiver projeção coletiva; XI – ações em que sejam partes pessoas jurídicas de Direito Público, Estados estrangeiros e Organismos Internacionais, nos termos do art. 83, inciso XIII, da Lei Complementar nº 75/93, respeitada a normatização interna; XII – ações em que se discuta a ocorrência de discriminação ou qualquer prática atentatória à dignidade da pessoa humana do trabalhador, quando o dano tiver projeção coletiva; XIII – ações relativas à representação sindical, na forma do inciso III do artigo 114 da Constituição da República/88; XIV – ações rescisórias de decisões proferidas em ações judiciais nas quais o Ministério Público já tenha atuado como órgão interveniente [3].

Em nosso sentir, o procedimento para a aplicação das sanções administrativas escapa de todas essas hipóteses. Até mesmo, em eventual descumprimento de medida, se necessária a aplicação da multa do artigo 28, §6º, Lei 11.343/2006, carece legitimidade ao MP para eventual execução, na medida em que a multa não é penal; lembrando que, de regra, esta multa é ineficaz frente à qualidade/capacidade econômica do infrator a determinar a fixação no piso legal — 40 dias-multa. Segundo a Portaria MF 75, de 22.03.2012, artigo 1º, II, débitos inferiores a R$20.000 não podem ter ajuizada a cobrança, em tese, de iniciativa da Fazenda Pública.

Enquanto se aguarda “o regulamento a ser aprovado pelo CNJ” para aplicação das medidas do artigo 28, I e III, Lei 11.343/2006 ao usuário flagrado de posse de maconha, como ler a competência dos “Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença” ante o princípio da inércia da jurisdição e a falta de legitimidade do MP para o procedimento administrativo?

Admitindo que o usuário foi flagrado, aceitou firmar um termo de infração administrativa para ser encaminhado ao Juizado (caso se recusar a assinar, tudo indica não comete delito de desobediência, por falta de regulamentação da matéria, ainda em um espectro de discricionariedade largo. Aos 47h20min da sessão do STF que firmou as teses, expressamente, foi dito ser vedada a prisão em flagrante delito do usuário), distribuído o termo, nos parece, é de ser oportunizada a manifestação do MP (eventualmente, face à presunção relativa de 40 gramas ser para uso próprio — tese 04) para, em havendo indícios de se tratar de traficância, assumir a iniciativa que lhe cabe (artigo 129, I, CF), requerer a declinação de competência para a Justiça Comum para instaurar o inquérito policial respectivo; ou, sem indícios a desconstituir a presunção de ser o infrator usuário, dar ciência e devolver ao cartório para as providências.

Frente à inércia da jurisdição, seria o diretor de Secretaria a parte legítima para autuar e requerer a aplicação da medida ao usuário; ou viria da delegacia de polícia o pedido para aplicação da medida, junto ao termo a ser autuado, viabilizando o início do procedimento respectivo (ressuscitando a redação anterior do artigo 531 do CPP que autorizava iniciar o processo das contravenções com o auto de prisão em flagrante)?

Em nosso sentir, eventual procedimento para aplicação de medida ao usuário iniciado pelo promotor de Justiça, sem atribuição na área administrativa, fere o devido processo legal. Na falta de orientação pelo CNMP, e com vistas na legislação vigente, pensamos que a atuação dos promotores de Justiça atuantes nos JECrim esgota-se aqui (vale assistir a sessão do STF quando se fixaram as teses [4], a partir dos 47min, o ministro André Mendonça lembra que o porte para uso é de competência dos JECrim e não da Justiça Comum — o ministro Gilmar Mendes determinava às varas criminais o processamento; toma a palavra o ministro Alexandre de Moraes para falar da realidade, que exige apreender e pesar a droga e a necessidade de, ainda, levar o usuário até a delegacia de Polícia; a partir daí, a discussão travada demonstrou um certo desconhecimento da prática jurídica atual relativa aos usuários).

Em arremate: no decorrer da votação e formulação das teses, foi invocado o sistema do Uruguai como base de raciocínio para fixar a quantidade de droga permitida para a presunção de ser usuário o portador, e a infração ser tratada no campo administrativo. Foi a Lei 19.172, de 20.12.2013, que regulamentou o uso da cannabis sativa L., no território uruguaio, a ser adquirida das instituições autorizadas pelo governo.

Para além de reconhecer o direito do uso, estabelecer limites de posse de droga, referida lei não pune ou aplica medidas ao usuário; apenas, dentre outras medidas, cria um cadastro, tratado como de dados sensíveis, dos usuários para que possam adquirir a droga de forma legal. Houve preocupação pelo legislador vizinho em fixar 18 anos como a idade mínima para consumo da maconha, prever políticas educativas sobre o uso problemático da droga e criar um instituto de regulação e controle da cannabis na estrutura do Estado para gerir o cumprimento da lei.

Adiante, foi lembrada a Lei 30, de 20 de novembro de 2000, de Portugal, para fins de fixação de procedimento e criação de comissões de dissuasão do consumo de entorpecentes nos moldes existentes naquele país. A importação do modelo nos parece um tanto problemática, na medida em que, naquele país, para além da aplicação de multa ou de outras medidas, o usuário pode ficar de um a três anos sob a tutela do Estado.

Ou seja, até que o Congresso venha a legislar sobre a matéria ou o CNJ estabeleça um procedimento mínimo (teses 1 e 4, disponibilizadas no site do STF), estamos a descobrir um procedimento administrativo respeitador do devido processo legal. Mas ficou certo que o STF fez a opção de tratar o uso de drogas como questão de saúde pública e não matéria penal.

[1] Direito Penal. Recurso Extraordinário. Art. 28 da Lei 11343/2006. Inconstitucionalidade da Criminalização do Porte de Drogas para consumo Pessoal. Violação aos Direitos da Intimidade, Vida Privada e ao Princípio da Proporcionalidade. (…) Provimento do Recurso Extraordinário e absolvição do recorrente, nos termos do art. 386, III, CPP (…). Íntegra disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/le/leia-anotacoes-ministro-barroso-voto.pdf. Acesso em: 2 jul. 2024.

[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-ago-20/leia-voto-ministro-gilmar-mendes-re-posse-drogas/ . Acesso em: 26 jun. 2024. p. 36-37.

[3] Disponível em https://www.cnmp.mp.br/portal/atos-e-normas-busca/norma/4038. Acesso em: 12 jul. 2024.

[4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T04acoI9a34. Acesso em: 13 jul. 2024.

Suzane Maria Carvalho do Prado é promotora de Justiça titular da 9ª PJ da Comarca de Ponta Grossa e mestre em Direito Penal Econômico pela PUC-PR. 

 

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